sábado, 28 de agosto de 2010

A bordo de um navio por 6 meses.

Quando voltei da Irlanda, demorou alguns meses para eu me readaptar ao Brasil. Viver em um país desenvolvido, com qualidade de vida, uma boa economia (na época), sem violência, onde é muito fácil e barato viajar para outros países, e depois ter que voltar para o Brasil, não é fácil. É verdade que amamos o Brasil e nos orgulhamos de ser brasileiros. Mas é verdade também que se pudéssemos reunir todas as pessoas que amamos em um país mais seguro e com mais qualidade de vida (com calor também), com certeza o faríamos. Aproveitaríamos o Brasil somente para tirar umas férias.

Ao invés de encarar a difícil readaptação, decidi tentar outra viagem, mas desta vez sem investir muito – um trabalho em navios de cruzeiros, por exemplo – eu não gastaria muito dinheiro e viajaria por vários lugares durante alguns meses. Essa idéia me parecia boa, sem falar que algumas amigas minhas já haviam vivido essa experiência e gostaram muito, porém, ressaltaram que o trabalho não era fácil e a carga de trabalho era de, no mínimo, onze horas diárias.

De qualquer forma, resolvi enviar meu currículo para algumas agências que fazem a seleção (Ceceth, Fato, Seaman, etc...). Não demorou muito e já recebi uma ligação da Ceceth. Foi praticamente uma entrevista por telefone, inclusive, testando o meu inglês. O rapaz que ligou pareceu um tanto satisfeito com a entrevista e já me perguntou se eu tinha interesse em ocupar uma posição na área de restaurante em um dos navios da companhia Princess, uma das maiores cias de navios do mundo. Sem hesitar, respondi que SIM. Ele me disse que mandaria em seguida um email com todos os detalhes.

Será? Tudo costumava ser tão difícil e dessa vez estava parecendo muito fácil. Bom, como prometido, recebi um email com “quase” todos os detalhes. Havia mais informações sobre como seria o processo seletivo e os valores que seriam cobrados referentes à inscrição e ao curso que seria ministrado pela empresa Selection Partners sobre “vida a bordo”. No total, eu iria investir aproximadamente uns R$ 1.200, incluindo os custos para tirar o visto dos EUA.

Primeiro, participei de um treinamento seguido de um teste e, se eu passasse nesse teste eu seria entrevistada pela “Mrs Princess”, a senhora que estava representando a Cia de Cruzeiros. O treinamento e o teste foram relativamente fácies. O difícil foi encarar a entrevista em inglês com uma mulher super arrogante e ainda por cima ter falar de assuntos relacionados à restaurante, coisa que eu não era tão familiarizada assim, afinal de contas eu havia trabalhado em pubs e restaurantes na Irlanda, mas ocupando funções do tipo “cata copos” e não o de garçonete, exceto por umas três semanas, quando cobri férias de uma garçonete italiana. Mas que fosse o que Deus quisesse! E Deus quis, fui aprovada para a vaga Assistant Buffet Stewards – o nome era bonito, mas só o nome.

Depois de aprovada, paguei o valor referente ao curso, providenciei o meu visto dos EUA (que também deu certo), os exames e as vacinas solicitadas pela Cia e no dia 11/05/09 entreguei todo o processo. Fui informada que eu deveria esperar de um a quatro meses para ser chamada para embarcar. Eu, otimista, pensei que seria chamada no 1º mês. Puro engano. Já estava no final do 3º mês e nada. Eu já havia procurado alguns trabalhos temporários antes, mas nenhum tinha dado certo, até que uma empresa me ofereceu uma vaga efetiva na época e eu aceitei. A minha idéia era ficar nesse trabalho e esquecer o navio, caso eu achasse que aquela era uma boa oportunidade, se não, deixaria o trabalho e embarcaria.

Dia 24/08/09 recebi uma ligação da agência informando que o meu embarque seria no navio Star Princess, dia 09/09/09 no Alaska com vôo que sairia de SP dia 07/07/09. “Posso confirmar o seu embarque?”. Dá pra imaginar a sensação que senti ao ouvir essa pergunta? Num dia comum, estava eu em SP, na hora do almoço, conversando com minha amiga Maria, só pensando em coisas simples do trabalho ou algo do tipo e, de repente, sou informada de que em alguns dias eu embarcaria para os EUA-Alaska pra passar 6 meses a bordo de um navio, viajando por todo o mundo. Loucuuura, não é!? Com um “friozão” na barriga, sem hesitar, respondi SIM, novamente.

Dia 07/09, mais uma vez, estava me despedindo da família e dos amigos, rumo ao Juneau, capital do Alaska, com escala em Seattle e Atlanta, indo para uma nova aventura.

Aproveitei para dar uma passeada em Seattle e Atlanta enquanto esperava a hora dos vôos e finalmente pegar o último vôo para Juneau – o pior vôo da minha vida. Era um vôo doméstico, bem pequeno, daqueles que a aeromoça pára pra conversar com os passageiros, aliás, só havia duas. Uma delas parou pra conversar comigo e depois de saber o motivo da minha ida ao Alaska, me anunciou nos alto-falantes do avião dizendo que eles tinham a bordo uma tripulante da famosa Cia de Cruzeiros, Princess. Foi uma situação muito inusitada. O problema foi o vôo em si. Uma tempestade muito forte caía naquele lugar e o avião se mexia mais que carroça na BR-452 Itumbiara-Rio Verde (a estrada mais esburacada do Brasil). Naquele momento, cheguei à conclusão de que eu era maluca mesmo, bem que minha mãe me dizia.

Sã e salva cheguei ao hotel onde me hospedaria até o dia seguinte, quando seria o meu embarque no navio.

Estas são algumas fotos tiradas do hotel em Juneau. Olhem a minha alegria!


Quando avistei pela primeira vez o navio onde seria a minha casa nos próximos seis meses, fiquei surpresa com o grande porte dele. Foi uma sensação inexplicável, boa e má ao mesmo tempo. Boa, porque eu estava indo rumo a uma nova aventura cheia de novas experiências e viagens. Má, porque de alguma forma aquilo seria uma prisão. A verdade era que eu não sabia o que me esperava, portanto, tudo era desconhecido.

Meu primeiro dia foi uma lástima, mas engraçado. Conheci o meu supervisor, um português chamado Alberto. Um homem aparentemente bem legal. Ele me auxiliou com os assuntos de uniformes, apresentação do navio e onde seria o meu lugar de trabalho, que para a minha surpresa era o “Crew Mess” – o refeitório da tripulação (fora os restaurantes dos passageiros, havia mais dois, um para os Staffs e outro para os Oficiais). Logo entendi que a hierarquia naquele lugar reinava soberanamente e que a minha posição estava bem no pé da pirâmide de hierarquias. Trabalhar no Crew Mess significaria exercer a função mais baixa do navio, a qual todos odiavam. Foi ótimo saber disso somente naquele momento.

Crew Mess

Arrumei as minhas coisas na cabine, que era um ovo, e logo conheci a minha “cabin mate”, com quem eu iria dividir o ovo. Na cabine havia um beliche, um pequeno armário, uma pia e um banheiro que era dividido com a cabine vizinha, ou seja, um banheiro para quatro pessoas (só descobri isso porque ao utilizá-lo a vizinha abriu a outra porta e me flagrou em uma situação bem constrangedora - que ótima primeira impressão!). Em seguida, tomei um banho, coloquei aquele uniforme que mais parecia uma fantasia e fui para o meu local de trabalho, o “Crew Mess”. Eu, pra variar, havia levado um “Scarpin” preto para trabalhar (pra quem não sabe, este é um salto alto de bico fino), o que foi motivo de muita risada. Não entendi o porquê na hora, mas de qualquer forma tive que comprar um novo par no almoxarife do navio, um tipo que parecia masculino, mas era antiderrapante, seguro e horrível.  O mais engraçado estava por vir – o momento em que começariam a me ensinar o trabalho (não é Bárbara? rs). Minhas atividades eram: manter as mesas, o chão e as linhas de buffet limpos, e manter vazios os “trolleys”, uma espécie de bandejeiro grande com rodinhas e pesado, onde a tripulação colocavam suas bandejas sujas depois de comerem. Foi isso o mais engraçado. Imagine, eu, desastrada como sou, ter que empurrar esses badejeiros de um lado para o outro do refeitório. E imagine agora, eu, com um salto alto de bico fino fazendo isso. Muito engraçado mesmo. 


Este é um vídeo mostra como são as cabines - by Barbara

         
                      Sapatos Scarpin                        Sapatos antiderrapantes do navio

Trolleys que tínhamos que empurrar (Sylvia e Barbara - Crew Mess)

Como a adaptação é uma habilidade do ser humano, logo me acostumei a lidar com os “trolleys”, depois de ter quebrados alguns copos e pratos, claro!

Trabalhei cerca de um mês e meio no Crew Mess, mais um mês e meio no Staff mês (que era um pouco melhor). Em seguida, finalmente fui para o Buffet dos passageiros e logo depois para o Café Piazza, onde era o melhor lugar para se trabalhar (se tratando da área de resturante). Lá era um local onde aconteciam vários shows. Um lugar muito agradável para trabalhar. Foi lá onde eu vi pela primeira vez um verdadeiro show de tango argentino. Realmente lindo!

      
Banda e dançarinos argentinos de tango.   

Difícil mesmo foi ter que se adaptar à falta de privacidade e liberdade, diferentes culturas e, principalmente, o excesso de horas trabalhadas. Chega uma hora que o corpo não agüenta, a imunidade cai e os problemas de saúde logo aparecem, sem falar no estado psicológico, que fica muito abalado.

Mas eu teria que permanecer a bordo pelos próximos seis meses, então não queria ficar reclamando e continuei a vida dura.

O bom era que havia alguns tipos de entretenimentos que nos permitia relaxar um pouco nas pouquíssimas horas vagas que tínhamos. Toda semana tinha um tipo de programação do tipo: dia de cinema, karaokê, disco, jogos, etc. A maior parte dessa programação acontecia do “Crew Bar”, lugar muito cobiçado pelos próprios passageiros, mas só era permitida a entrada de tripulantes, staffs e oficiais.

Havia também uma academia e uma área externa com uma piscina e dois “ofurôs” (minha área preferida nos dias de calor, claro!).

Área da Piscina dos Tripulantes

Agora, a melhor coisa desse trabalho, era poder “go ashore” que significa “desembarcar”, “ir à terra”. Os dias no navio eram diferenciados por dias de mar e dias de porto. Nos dias de mar, tínhamos que trabalhar normalmente, sem possibilidade de horas de folga (hours off). Já nos dias de porto, havia um revezamento, metade de uma equipe tinha algumas horas de folga, enquanto a outra metade trabalhava. O inverso acontecia no próximo dia de porto. Ou seja, torcíamos para que num cruzeiro houvesse muitos dias de porto. Assim, podíamos nos sentir livres novamente e apreciar lugares maravilhosos, como vários que conheci.

Alaska, Seattle, São Francisco, Vancouver, México, Hawai, Polinésia Francesa, Costa Rica, Porto Rico, Equador, Peru, Chile, Argentina, Uruguai, Nova Zelândia, Austrália, etc...


      
    
  


Uma das coisas que também servia como fuga para a tripulação, era ter um relacionamento amoroso. A política era clara. Relacionamentos pessoais só eram permitidos entre os tripulantes, staffs e oficiais – não com PASSAGEIROS. É claro que essa regra só valia mesmo para nós, da tripulação, e para alguns staffs, não para os oficiais que sempre davam um jeitinho de burlar essa política.

Amizade era bem comum entre tripulação e passageiros. Afinal de contas, convivíamos de uma semana a um mês com as mesmas pessoas e as conversas informais e trocas de experiências eram inevitáveis. Tive muito contato com passageiros de todo o mundo, inclusive do Brasil. Passageiros adoravam ouvir experiências contadas por tripulantes e sempre perguntam dicas de atividades para se fazer num cruzeiro.

       

Diferente de mim, que estava naquela vida para viajar, conhecer novos lugares e pessoas, e ter uma nova aventura, grande parte da tripulação trabalha nesses navios de cruzeiros por necessidade. Pessoas vindas de países com problemas econômicos como os da Ásia, Leste Europeu, América do Sul, entre outros, era o mais comum. No total, são mais de 40 nacionalidades trabalhando todas juntas, ou seja, pessoas com culturas totalmente diferentes tendo que conviver umas com as outras de modo civilizado, sem conflitos. Caso contrário, elas poderiam ser enviadas de volta as suas casas a qualquer momento, principalmente se tratando de “má-conduta”.

      
Aqui tem brasileiro, mexicano, portugues, peruano, filipino, ucraneano,
tailandês, indonésio, esloveno e búlgaro.

Uma das coisas mais difíceis de adaptar é com o “vai e vem” do mar. Fiquei mareada diversas vezes. Vivia com dor de cabeça e ânsia de vômito. Havia dias em que o mar, combinado com uma tempestade forte, virava um mostro que parecia querer engolir o navio. Era o que parecia para mim (rs), que era marinheira de primeira viagem “literalmente”, não para aqueles que já estavam acostumados.


Este é um dos vídeos que fizemos num dia em que o mar estava revolto. Fiquei morrendo de medo. Veja o que aconteceu no 1min30 de filmagem.





Mas foi em alto mar também, onde eu vi os melhores pôr e nascer do sol. Um mais lindo que o outro.


Lembro de quando chegamos às Ilhas Samoa, na Polinésia, fazia uma senama que um tsunami com ondas de mais de três metros havia arrasado vários povoados por lá. Foi lamentável ver toda aquela destruição. 

Fotos de Samoa após o tsunami

Houve um dia em que eu senti muito medo. Foi quando já estávamos a dois dias para chegar em Valparaiso/Chile, quando fomos surpreendidos com a notícia de que um terremoto fatal atingiu o Chile, este com magnitude de 8,8 graus na escala Richter, provocando a morte de mais de 802 pessoas. O cruzeiro em que estávamos terminaria em Valparaiso, onde outro começaria, ou seja, cerca de 2000 passageiros iriam desembarcar e mais outros 2000 iriam embarcar. O clima no navio ficou péssimo. Quando os passageiros souberam da notícia criou-se um pânico geral, inclusive entre os passageiros Chilenos, que tinham suas casas e famílias por lá. Os que estavam embarcados não queriam desembarcar e vice-versa. Ficamos quatro dias embarcados no porto de Valparaiso. No segundo dia, pudemos sentir um dos pequenos tremores que ainda aconteciam na região. Foram dias que nunca irei esquecer.

Apesar da piscina, dos ofurôs, das várias atividades de entretenimento e daquele ambiente rico em cultura dentro do qual eu estava inserida, os meses demoravam a passar. No final do sexto mês eu já não agüentava mais aquele trabalho e não via a hora de ir para a casa, de sair daquela prisão. Percebi que mesmo conhecendo lugares lindos e vivendo coisas novas, nada daquilo pagava a minha liberdade de ir e vir de qualquer lugar sem ter que dar satisfação ou pedir permissão para alguém. Sentia como se estivesse sendo vigiada e controlada o tempo todo, e na verdade, de certa forma, eu estava.

Lembro que no meu último dia, não deu tempo de começar a trabalhar no horário. Estava tentando arrumar minhas malas, mas precisava de mais tempo livre. Então pensei: “Ah, hoje é o meu último dia mesmo e já tem outra pessoa no meu lugar. Quem vai se importar se eu me atrasar um pouco?...”. Mas me enganei. Enquanto estava na cabine, na primeira hora em que eu deveria estar trabalhando, recebi umas quatro ligações, a começar da minha encarregada e, pra concluir, o Maitre do navio que, gritando, me disse coisas absurdas do tipo: “Pensei que você era mais responsável, mas vi que me enganei”, ou “Quem você pensa que é? As leis do mar são rígidas. Você não pode deixar de trabalhar nem um minuto sequer”, e a pior “Fique na sua cabine. Eu não quero vê-la até a hora de você partir amanhã”. Estava tão aliviada de estar indo embora que nem me abalei e curti meu último dia sem trabalhar (rs). No dia seguinte, quando fui assinar os papéis para o desembarque, só se falava nesse assunto “a Viviane não foi trabalhar e ainda discutiu com o Maitre (um dos homens mais respeitados e temidos do navio).” Eu mereço, né?

Enfim, experiências têm que ser vividas. Aproveita-se o que é bom, aprende-se com o que não deu certo e descarta-se o que é ruim ou o que não te acrescenta em nada. Essa experiência foi única. Afinal de contas, não é sempre que temos a oportunidade de morar em alto mar por seis meses, convivendo com pessoas de mais de 40 nacionalidades diferentes e conhecendo lugares ma-ra-vi-lho-sos pelo mundo.

Foi ótimo! Agora, qual será a minha próxima aventura?

Viviane Brizzi